8.11.14

Entre os dois mundos

         Os olhos de uma invadem os olhos da outra. Uma convergência de íris a tentarem uma conversa infrutífera, posto muda.
         A filha sorri e tenta fazer com que seus olhos também sorriam, mas para os lábios é mais fácil mostrar uma alegria que não sentem. Segura, entre as mãos, o rosto da velha e, entre um meio sorriso, silaba: "Mãe...".
         Os lábios da velha não se movem. A mulher tem no rosto tantas rugas prontas a dizerem alguma coisa na mudança de suas linhas, na atenuação ou aprofundamento de vales de pele, mas nenhuma se mexe. Os olhos seguem fixos nos olhos da filha.
         O voo de um pássaro diz curta frase de sombra ao passar frente a janela, fazendo com que a velha vire a cabeça, com que os vincos em seu rosto mudem de posição, com que a testa franzida lhe aumente os olhos, guiados por algum interesse e curiosidade.
         A filha se anima com a reação, com a aparente vontade de leitura da palavra já perdida, com o interesse da mãe na pequena penumbra que voou pelo quarto - e sorri, agora com lábios e olhos.
         A velha volta à posição inicial, reacomoda as rugas ao discurso de sempre, readquire a monolítica postura do corpo a dizer-se ao mundo pelo monótono discurso da alienação, submerge numa quietude que a metamorfoseia na quietude do quarto - quietudes só quebradas pela sombra do voo de um pássaro.
         Os olhos de uma tornam a invadir os olhos da outra. Uma profusão de dizeres da filha se perde nas surdas negras órbitas da velha.
         "Mãe...", mais uma vez, na tentativa de encontro entre os dois mundos.
         A velha mal pisca, quieta na maciez do familiar mundo irreconhecido do olhar da filha.

12.9.14

Tudo tão ausente

         Voltando do jantar, olho a janela da sala, que deixei com a luz acesa, e vejo a silhueta da cortina.
         O jantar nem mereceria esse nome. Foi, como tem sido nesses meses, um momento em que coloco à minha frente um prato de comida e me obrigo a esvaziá-lo. Nem sei ao certo o gosto, escolho do buffet coisas conhecidas para não ter a desagradável surpresa de ser desperto de minha distração por um sabor ruim, que me torne atento ao prato, à mesa, à cadeira vazia diante da minha.
         Comer tem sido uma experiência de olhar o nada, mover maxilares, engolir - até que o garfo raspe o prato numa inócua procura metálica por migalhas que já não existam.
         Tomo um gole de água, pago a conta e saio pela rua numa forçada curiosidade pela vida das pessoas: concentrar-me nos movimentos dos outros aliena-me da ausência ao meu lado. Ao meu lado esquerdo - sempre ao meu lado esquerdo...
         Então é chegar em casa, um pouco de televisão no quarto, e um afundamento na escuridão, disfarçada pelo sono leve e que o dia dissipa com claridade, sem jamais eliminar-lhe o peso.
         E todas noites há a janela, a cortina: a sombra do puxador cruzando o tecido em obediente diagonal aprendida na repetição meticulosa de todas as tardes - quando a rua não mais lhe interessava e você cerrava o tecido.
         Olhar essa cortina, que não mais se mexe; esse puxador, que há meses não se cansa da diagonal; perceber esse silêncio submisso de ambos, a não reclamarem coisa alguma, faz-me parecer que jamais saberei novamente um jantar, que jamais sairei dessa casa - tudo tão ausente na sua ensurdecedora ausência.

         Isso me parece a eternidade.

23.5.14

Não é o homem

         A luz não é o homem que controla. Às vezes, ela fica acesa a noite toda, esquecida pelo dedo displicente que não a emudeceu no interruptor, criando uma massa de claridade indiscreta a vigiar-lhe o sono. Mas não cabe ao homem reclamar: não é para ele que a luz existe ou deixa de existir.
         O tempo não é o homem que controla. Às vezes, uma noite calma e estrelada desaba-se numa torrente de chuva e vento a surpreender-lhe o sono num imprevisto sorrateiro e silencioso. Nisso ao menos o homem se iguala aos outros homens: chuva, frio, calor, vento entrecruzam conversas e humores à revelia de opiniões alheias.
         A noite não é o homem que controla. Às vezes, ela se adianta e cai sobre o mundo numa sofreguidão de trevas. Outras vezes, aninha-se pouco a pouco no céu, deixando-o esmaecer lentamente o azul e impondo-se numa crescente penumbra aveludada.
         O silêncio não é o homem que controla. Às vezes, nada lhe perturba o sono. Mas isso é raro: quase sempre há a histeria de pneus ou o desespero de uma buzina ou o uivo desconsolado de um cão entregue a uma solidão não pedida.
         O seu canto, não é o homem que o controla. Nessa noite será aqui - tem sido aqui há várias noites -, mas acontece de os homens colocarem obstáculos ao canto que lhe serve às noites, ou escalarem homens para tirar-lhe o canto sob bicos de coturnos. Ao homem cabe somente calar-se e se retirar.
         Retirar-se e sair à procura.
         Não faltarão noites, não faltarão cantos onde caiba o comprimento de papelão que o abriga - e ali ele possa aninhar-se e cerrar olhos.
         Pois, quando o sono chega, é incontrolável.

22.4.14

Tão natural e corriqueiro

 É tudo tão natural e corriqueiro: eu sentada na sala, folheando uma revista enquanto
espero o início de um filme, vejo-o passar com a sempre e mesma expressão corporal - costas
arqueadas, cabeça levemente inclinada, olhos fixos no chão, na medrosa procura do obstáculo
ou do abismo a lhe provocar a queda fatal. Ele sempre foi assim diante da vida: uma
insegurança em cada passo, um vacilo ante cada atitude, um jeito irritante de tatear as opções
com uma covarde indecisão para escolher.
 Distraída com a revista, mal me apercebi de sua chegada. Na realidade, não houve
barulho algum - chamou-me a atenção a sombra de seu vulto escorrendo em direção ao quarto.
 Não me espantei porque a banalidade dele é tamanha que não me assusta. E pode ser
apenas ser impressão minha que ele tenha chegado. Aliás, tem de ser impressão minha o
deslizar indeciso dele pela casa.
 Não o chamei porque nunca o chamo. Ele tem suas razões para entrar calado, eu tenho os
meus motivos para deixá-lo quieto e não me importunar com reclamações e pessimismo.
 Pode parecer estranho, mas nos damos bem assim. Estamos acostumados, depois de
tantos anos, a esse mútuo vazio a alimentar a casa; a esse silêncio meu com as fraquezas dele e
ao silêncio dele a não provocar minha pouca paciência.
 De modo que, depois de cinco semanas sem ele, deve ter sido só impressão minha aquele
vulto vacilante em direção ao quarto, que não mais é dele.
 Mas não me espanto mesmo porque, fraco como ele é, não me admiraria encontrá-lo
recolhido ao quarto, sentado na cama, a apoiar as mãos nos joelhos e a olhar o tapete numa
aflição inútil de quem não acha as palavras por temê-las tão logo lhe escapem da boca.
 Antes de o filme começar, vou ao quarto.
 E ai dele se sua covardia não estiver sentada na cama.

Tudo tão ausente

 Voltando do jantar, olho a janela da sala, que deixei com a luz acesa, e vejo a silhueta da
cortina.
 O jantar nem mereceria esse nome. Foi, como tem sido nesses meses, um momento em
que coloco à minha frente um prato de comida e me obrigo a esvaziá-lo. Nem sei ao certo o
gosto, escolho do buffet coisas conhecidas para não ter a desagradável surpresa de ser desperto
de minha distração por um sabor ruim, que me torne atento ao prato, à mesa, à cadeira vazia
diante da minha.
 Comer tem sido uma experiência de olhar o nada, mover maxilares, engolir - até que o
garfo raspe o prato numa inócua procura metálica por migalhas que já não existam.
 Tomo um gole de água, pago a conta e saio pela rua numa forçada curiosidade pela vida
das pessoas: concentrar-me nos movimentos dos outros aliena-me da ausência ao meu lado. Ao
meu lado esquerdo - sempre ao meu lado esquerdo...
 Então é chegar em casa, um pouco de televisão no quarto, e um afundamento na
escuridão, disfarçada pelo sono leve e que o dia dissipa com claridade, sem jamais eliminar-lhe
o peso.
 E todas noites há a janela, a cortina: a sombra do puxador cruzando o tecido em
obediente diagonal aprendida na repetição meticulosa de todas as tardes - quando a rua não
mais lhe interessava e você cerrava o tecido.
 Olhar essa cortina, que não mais se mexe; esse puxador, que há meses não se cansa da
diagonal; perceber esse silêncio submisso de ambos, a não reclamarem coisa alguma, faz-me
parecer que jamais saberei novamente um jantar, que jamais sairei dessa casa - tudo tão
ausente na sua ensurdecedora ausência.
 Isso me parece a eternidade.

O escuro na periferia do quarto

 Não consegue mais dormir no escuro.
 De início, deixava um pequeno abajur a um canto do quarto, receiosa de que a luz lhe
atrapalhasse o sono. Mas não conseguia dormir, apoiando, de tempo em tempo, os cotovelos no
colchão para espiar a penumbra, certa de haver percebido algum movimento, de ter notado a
passagem da diáfana nuvem de uma sombra - e pior: não conseguia enxergar o vazio ao seu lado
na cama.
 Ficar olhando o escuro fazia com que o homem se tornasse ainda mais ausente; tatear o
lençol em toda a extensão de seu braço, sem encontrar a sempiterna presença do corpo dele;
rolar pela cama, e consumir-se num breu que a levava ao abismo do leito, escancarava um
abandono que a tornava mais perdida, pois lhe criava a esperança de que, em algum lugar
daquela escuridão, o homem se escondia para lhe pregar uma peça.
 Resolveu, então, colocar o abajur em cima do criado-mudo, empurrando o escuro para a
periferia do quarto.
 Suas noites não se tornaram muito melhores, mas ao menos consegue ter o suspiro de
alguns momentos de cochilo, como agora.
 Já faz quase uma hora que ela dorme, depois da espera pelo sono em atitudes de
estátua: a rigidez de membros, a imperceptível respiração no lento arfar do peito envolto em
aparente armadura de concreto, a pétrea visão em vazios olhos abertos.
 Acorda em leve sobressalto, com a certeza de que apenas fechou e abriu olhos, e de que
está a boiar no meio da madrugada - um trevoso e invisível corpo em que a mulher lança o leito
todas as noites em estática deriva.
 Os cantos do quarto se escondem na escuridão, o lado vazio da cama está fracamente
iluminado.
 Não consegue mais dormir no escuro.
 A luz do abajur não torna suas noites muito melhores, mas ela confia que sirva de farol a
orientar a chegada da sempre redentora luz do tempo.

15.3.14

Fogo

         O fogo não dorme ou desdorme: ele só sabe ser.
         Em estado de latência, é brasa - jamais fogo.
         Há sempre a necessidade da fagulha, o início acanhado, a tímida aparição em arremedo de labareda a perscrutar o mundo com a infantil curiosidade da chama. E, então, a avidez.
         Essa guimba acesa, lançada ao ar, carrega a potencialidade de um tempestuoso discurso de um mar de chamas.
         Cai em um terreno vazio, aninha-se sem jeito, sobre o mato seco, nos últimos estertores de um definhar indolor.
         A brasa roça o mato, a se contorcer num desejo quase impossível de escapar.
         Uma brisa lambe a brasa, aviva-lhe a vontade de se agarrar à vida, de consumir todo o resto do papel, que pouco ainda há.
         A brisa dá uma volta sobre a vegetação seca, abraça o resto do cigarro com braços de vento e ajuda a brasa a vencer a frágil resistência do mato.
         A fagulha.
         Uma pequena chama ergue cabeça, tronco e membros sobre a pele esturricada do chão. A brisa segue rodando uma cumplicidade involuntária, animando a chama a derivar-se sobre o esqueleto seco do que foi uma vegetação.
         Logo o fogo se ergue em vistoso corpo, consumindo rapidamente suas infância e adolescência, que não lhe interessam.
         É agora um mar em sinfonia a crescer em cheia maré sobre um leito que lhe alimentará a caudalosa vigília enquanto permanecer seco.

         O fogo só sabe ser.

30.1.14

Diário da ausência

         O travesseiro está no lugar, ou melhor, os travesseiros estão no lugar: o meu e o teu.
         Ainda de manhã, bem de manhã, tua camisola era o teu corpo despojado a esparramar-se sobre a cama. Agora, não mais. Sumiu, assim como sumiram teus chinelos, tua saia sobre a poltrona do quarto. Tudo ordeiramente colocado em seus lugares - gavetas e armários a minha volta, metidos num silêncio de segredos, a ocultar-me onde exatamente cada coisa.
         Mas você está por aqui.
         Resta ainda teu perfume no banheiro, sorrateiro o bastante para não se deixar dobrar e meter-se em vincos dentro de alguma dessas gavetas mudas. Mas há bastante ar - apesar de, neste momento, me parecer escasso - para ele andar e mover-se na morosa fluidez de um animal tímido. Em pouco tempo, o teu perfume terá se dissolvido num desapego nômade de quem não percebe ser o ar sempre igual - e que não lhe custaria durar-se um pouco mais no banheiro.
         Daqui a pouco vou sair. Não sei se vou correr, se caminhar. Vou sair. Tua ausência é um cão triste a farejar meus passos aqui dentro, a derramar-me olhos úmidos enquanto me movimento por toda a ordem que reina na casa.
         Quando eu voltar, provavelmente será noite. Espero que o cão tenha achado um canto ou um espaço em alguma gaveta - apesar de ter a certeza de que, durante a noite, seu uivo mudo sufocará até mesmo a gritaria das luzes, que deixarei acesas.
         Ao amanhecer, o teu travesseiro estará no mesmo lugar de agora; tuas roupas, obedientes nas gavetas e armários; a casa, organizada e limpa.
         E assim será.
         Até que, por Deus, tanta ordem acabe.

17.1.14

A livrar-se do pecado


          Sentada no sofá, ela não consegue tirar os olhos da maçaneta da porta da sala.
         Está na mesma posição desde que chegou ao apartamento, há cinco minutos...ou seria uma hora?...talvez um ou dois dias, sabe-se lá. Somente ela poderia responder, mas não tem a mínima ideia.
          Sentou-se para ver televisão, não encontrou canal que a fizesse parar de pressionar o controle remoto com o ritmado bate-estaca do indicador.
         Pegou uma revista sobre a mesa de centro, folheando-a com o mesmo desinteresse com que olhava os canais na TV. Olhou as horas e se perguntou quando ele chegaria hoje.
         O celular dentro da bolsa, a bolsa sobre a mesa da cozinha, a cozinha na longínqua esquina de uma curva que passa pela sala de jantar, fez com que desistisse de lhe telefonar para perguntar.
         De mais a mais, quase sempre o horário que ele assegura não se concretiza.
         Na maioria das vezes, um rápido chá com torradas, uma ducha na lenta preguiça do corpo a desfrutar da tepidez da água, um roupão macio a trazer afago à pele fresca, a luz solitária de um abajur fiel, as linhas solenes de um livro pego na estante, ao acaso, são companhias para suas noites de espera.
         Por vezes, o sono se recusa a aguardar quieto, a um canto do quarto, o momento em que será chamado: sobe silencioso ao leito, escorre fluidez pelos lençóis e cresce como maré cheia, até atingir com desaviso o corpo da mulher: nada mais então pode salvá-la, e a espera se converte em um corpo semitombado, em um livro escapado das mãos, em uma silenciosa luminosidade de uma luz fiel.
         "O tédio é o único pecado para o qual não há perdão" - Oscar Wilde. Ela lê na revista a frase solta em meio a outras frases, flutuando na página como ilhas, à deriva, moldadas em letras.
         Os dias podem se suceder, o sono vai envolver a si mesmo num canto do quarto, mas está decidida: continua a esperar.
         Uma hora a maçaneta vai girar.

23.11.13

Uma maravilhosa onda humana

         A caixa de papelão é fina e o homem a retalha com cansada veemência. Descarta a tampa e o fundo, restam quatro placas empilhadas uma sobre a outra e envolvidas pelo defeituoso laço de um abraço.
         O homem olha a rua: esquerda ou direita?
         Passam poucas pessoas por ali. A essa hora da manhã, o movimento na confluência com a avenida deve ser maior. Decide, então, tomar a sua esquerda, subir a rua.
         A cadência dos passos pode demonstrar indecisão, mas é tão somente ausência de pressa. Os pés não martelam o chão: tocam-no com um subentendido pedido de licença, às vezes se arrastam como se houvesse o desejo de limpá-lo da sujeira - que ao chão e ao homem não incomoda.
         As quatro placas de papelão trocaram de braço. O peso é nenhum, a troca foi feita apenas para liberar a mão direita para que ajeitasse a barra da calça, que se prendia sob o tênis num atrapalhamento de excesso de pano.
         Para.
         Olha rua acima, olha rua abaixo.
      O vento cresce em velocidade próximo à esquina. Avoluma-se no corredor de prédios que sempre se espremem à proximidade de uma avenida.
         Falta somente um quarteirão, não compensa agora mudar de direção rua abaixo. Mantém a escolha e retoma os olhos no chão, os passos ora arrastados, ora pisados com um despropositado e impensado cuidado.
         Na esquina, uma onda - uma maravilhosa onda humana - move-se com a matinal pressa das pernas; com o necessário apoio do balanço dos braços; com a descombinada, mas onipresente, contrição de rostos.
         O homem passa a mão pelo rosto, joga no chão três placas de papelão e sobre elas se ajoelha. Abaixa a cabeça, levanta o olhar - a varrer com ele o movimento das pessoas -, abre a mão direita em concha, a esquerda segura a outra placa onde, há pouco, um pedaço de giz rabiscou: "TENHO FOME".